Expressões como Ética, Direitos Humanos, Democracia e Cidadania são comumente usadas pelos pensadores da sociedade quando falamos dos representantes do Estado, mas de fato, muito pouco difundidas pelas autoridades e formadores de opinião. Obviamente, a difusão destes conceitos está intimamente ligada à prática e ao exemplo, que fala sempre mais alto que qualquer discurso do tipo: façam o que dizemos, mas não façam o que fazemos.
É exatamente sobre discurso desprovido de ação prática na gestão pública, que quero falar neste artigo. Quando lembramos que a definição de Ética brota da língua grega Ethos (morada) ou “Morada do Ser” como bem definiu o Filósofo Alemão Martin Heidegger, se torna natural reconhecermos que a ética nos indica direções e descortina horizontes para a própria realização do ser humano. Em essência, a conduta ética opera a construção constante de um SIM a favor da evolução do ser pessoal.
Até por isso, a ética deva ser eminentemente positiva e não proibitiva, pois para ela é mais importante respeitar e preservar a vida, do que o compromisso de não matar o próximo.
Temos visto muita gente falar em crise ética na gestão pública brasileira, mas seria importante perguntarmos também, quais foram as nossas referências de conduta ética nos últimos 30 anos. Quantos nomes brotariam facilmente em nossas mentes? Quantos homens e mulheres públicas se notabilizaram neste período, pela busca afirmativa do direito à dignidade da vida humana em sociedade, ao invés de militar na defesa de ideologias, grupos e corporações?
No último dia 9 de agosto, o Jornal O Estado de São Paulo publicou matéria sobre a pretendida reforma da polícia de São Paulo divulgado pelo novo comandante geral da corporação. Apesar de informar a adoção de um conjunto de indicadores de eficiência e redução da criminalidade, a matéria destacou a criação de uma gratificação variável para premiar policiais que diminuíssem o índice de letalidade em ocorrências “supostamente” enquadradas como resistência seguida de morte. Tal cenário coloca mais uma vez na berlinda a tal crise ética que falamos há pouco.
Uma referencia ética de valores distorcidos, que permeia a política de gestão dos recursos humanos policiais, praticada tradicionalmente no Brasil e na maior parte do mundo subdesenvolvido, quiçá, também no mundo desenvolvido.
Como em outros momentos, o Estado brasileiro (neste caso representado pela policia) agiu motivado pela tentativa de reduzir os impactos de sucessivos escândalos envolvendo seus agentes em ocorrências desastradas, em que, o excesso injustificável do ponto de vista tático/operacional ceifou a vida de pessoas.
Gratificação variável para quem “matar menos”, convênio com a Universidade para rever matriz de formação, entre outros anúncios, quando destacados pela mídia servirão apenas para desviar a atenção das críticas e aliviar a pressão externa, em especial, do Ministério Público Federal que há uma semana cobrou o afastamento de toda a cúpula da PM de São Paulo.
Mudar o comportamento do capital humano de uma organização policial requer uma visão muito além de mudar sua matriz de formação ou conceder gratificações.
Não estaríamos neste caso, diante de uma flagrante demonstração de inversão de valores?
Não ser pobre é diferente de ser rico. Não estar doente é diferente de ser saudável. Da mesma forma, matar menos é diferente de preservar a vida.
Há 2 meses o próprio Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV) divulgou uma pesquisa apontando que quase metade dos brasileiros (47,5%) concorda que os tribunais aceitem provas obtidas mediante tortura policial. Em 1999, o número era de 28,8% favoráveis à obtenção de provas por meio de violência. Tais números mostram como anda a ética em nossa sociedade, que nos remete a um quadro preocupante: Esquecemos que caso estas práticas se tornem corriqueiras, ninguém estará livre de ser vítima delas (violência policial).
Obviamente não podemos ser omissos ao fato que na outra ponta, os policiais estão sendo acuados pela ousadia marginal. Em julho deste ano (apenas seis meses), mais de 40 policiais já haviam sido mortos, contra 47 em todo ano de 2011. Porém, é nesta omissão do estado/sociedade que está à raiz da traição ao capital humano das polícias, pois, a sociedade que não valoriza a vida como ética fundamental, não valoriza suas instituições, a família e não valoriza a si mesma.
Para concluir o raciocínio preciso recorrer a uma afirmação do CEO de um grande grupo empresarial brasileiro, que recentemente assisti falar sobre a expansão e internacionalização da empresa pelo mundo. Perguntado em uma entrevista sobre qual área estratégica demandou maior parte de sua atenção neste processo expansão, respondeu sem pensar: Investimento em Pessoas.
Pessoas que dirigem e operam a empresa. Pessoas que compram e divulgam os produtos da empresa.
Este último exemplo mostra qualquer organização de sucesso, seja no capital privado, ou nos mais essenciais serviços prestados pelo estado, reconhecer nos talentos humanos o capital essencial para cumprir metas e resultados estratégicos é base de uma cultura ética superior. Uma ética que afirma o valor da vida.
Atrair, formar, desenvolver, recompensar e reter os melhores talentos nas polícias é uma visão ainda atrasada quanto ao uso de tecnologias e estratégias de gestão em nossas agencias de segurança, tanto pública como privadas.
Um agente de segurança pública não anseia apenas por melhores salários, pois isso é o mínimo que a sociedade deveria oferecer-lhe para arriscar a vida todos os dias. Ele precisa também de estímulo profissional, perspectiva de progressão na carreira, prêmios por produtividade, ambiente profissional adequado, assistência social e familiar, além de capacitação e formação continuada.
No caso das agências policiais, que incluo obviamente as Guardas Municipais, esta preocupação deveria estar a muito tempo no centro das prioridades organizacionais. Valorizar os recursos humanos policiais revelaria ao mesmo tempo, uma preocupação com a vida das pessoas que a mesma polícia protege.
Aí está a relação entre os Direitos Humanos e a Ética Policial. Uma cultura ética que valoriza a vida humana deve garimpar e forjar seus quadros comprometidos com estes “valores” humanos e éticos fundamentais.
Num país em que os direitos elementares e fundamentais dos cidadãos não são respeitados, não há porque nos espantarmos com o fato de que a polícia também não reconheça que seus homens e mulheres deveriam ter direitos fundamentais e elementares reconhecidos e preservados. Daí se tornar “normal” gratificar um policial por “matar menos”, quando isso deveria ser uma busca insaciável por parte dos nossos gestores, apesar de todo risco e desgaste emocional que cerca a atividade em torno de seus quadros. Promover a ética na policia é afirmar a primazia pela prevenção, pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pelo princípio da legalidade.
Todos estes elementos, pilares de qualquer democracia minimamente desenvolvida.
* Sérgio Ricardo de França Coelho, Guarda Municipal de Santos, pesquisador e consultor em segurança pública municipal , é diretor Presidente do Instituto IPECS de Segurança Pública Municipal , foi Coordenador do Departamento de Segurança da Cruz Vermelha, fundador e presidente nacional da União Nacional dos Guardas Municipais do Brasil entre os anos de 98 e 2006, e Secretario Geral do Conselho Nacional das Guardas Municipais – CNGM entre os anos de 2005 e 2011.
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