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segunda-feira, 9 de junho de 2014

“Temos que tomar cuidado para não criminalizar a pobreza”

SEGUNDA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO DE 2009, 10H34MODIFICADO: QUARTA-FEIRA, 8 DE JANEIRO DE 2014, 0H28

A Campanha da Fraternidade de 2009 tem como tema "Fraternidade e Segurança Pública". Mas como garantir esta segurança e combater a violência?

Muito corrente na população é a idéia de que a violência deve ser combatida com mais violência, em que os criminosos devem ser punidos das formas mais severas. Mas qual seria o verdadeiro caminho de mudança social?

O Secretário Nacional de Segurança Pública, Ricardo Brisolla Balestreri, explica quais são as verdadeiras bases de transformação para a sociedade e segurança pública e afirma que entre criminalidade e pobreza não há uma relação direta.

noticias.cancaonova.comA Segurança Pública é um dos principais problemas que afetam a qualidade de vida dos brasileiros. Nos deparamos com uma crescente criminalidade e, portanto, deficiência na segurança. Diante dos fatos, como o governo tem trabalhado e, além das ações imediatas, o que é planejado a longo prazo?

Ricardo Balestreri – O Governo Federal reconhece que, hoje, a demanda mais popularmente sentida e reclamada é exatamente a demanda por segurança pública. A população brasileira se dá conta, de maneira sábia e intuitiva, que, sem segurança pública, não é possível haver educação de qualidade, entrada com liberdade dos agentes de saúde nas comunidades populares, não é possível ter livre empreendedorismo popular, pois onde o crime domina, os negócios populares não podem ser colocados e não prosperam. Não é possível, além disso, uma formação de redes autônomas de lideranças populares, porque o crime não permite. O Brasil tem realmente, hoje, a segurança pública como a sua maior demanda, a qual abre espaço para outras demandas, igualmente importantes como saúde, educação, empreendedorismo econômico popular e assim por diante.

A crise na área de segurança é muito grave há décadas no Brasil e só recentemente se passou a ter projetos sistêmicos de segurança pública. De maneira geral, a segurança pública foi tratada, historicamente, com base nas pressões do senso comum, com base muito mais nas emoções desordenadas do que propriamente na racionalidade e no conhecimento científico, e eu diria com base em muita demagogia em agradar a opinião pública e garimpar votos com medidas que não solucionam e só agravam os problemas, como, por exemplo, a utilização da violência sem inteligência. A violência ilícita que não está permitida para um Estado democrático de direitos. É claro que o Estado deve utilizar a força legítima, mas não uma violência desmedida para combater a violência. Nós tivemos, nas últimas décadas, no campo da segurança pública, um processo de agravamento do fenômeno a partir da ação dos próprios entes governamentais de segurança pública.

A polícia é muito importante, mas sozinha não resolve o problema de segurança pública. Se ela resolvesse, viveríamos num paraíso. E também se violência contra violência resolvesse, também viveríamos muito bem, sem drama nenhum. O que faz a diferença é a inteligência, o conhecimento, a técnica e pensamento estratégicos. Por isso, a mudança de paradigma, que vem sendo capitaneada pelo PRONASCI, o Programa Nacional de Segurança com Cidadania, é a grande expectativa de mudança histórica de um país que preserve o direito humano da segurança pública. Um direito que não é atendido particularmente em relação às pessoas mais pobres da população, aquela que não tem recursos para contratar segurança particular e não moram em condomínio fechado.

Todas as pessoas, mas especialmente estas, devem ser atendidas pelo Estado democrático e de direito. Então, nesse sentido, a mudança de paradigmas é o casamento de investimento social com políticas policiais. É preciso que se substitua o velho modelo da polícia invasiva, a polícia que entra chutando porta e dando tiro, eventualmente matando inocentes e, depois, se retira. É preciso, portanto, que façamos investimentos sociais. O PAC tem feito isso, o PRONASCI em relação à juventude e, junto a isso, precisamos ter uma polícia de proximidade. Isto é, uma polícia que entra e fica, se enraíza. É o policial do qual nós conhecemos o nome e sobrenome e ele sabe quem nós somos, onde moramos e o que representamos na comunidade. Uma jornalista do Rio de Janeiro teve uma idéia muito feliz, numa matéria sobre esse tema, em que intitulou "Um policial para chamar de ‘Seu’". E o que é isso? É sairmos do apartamento onde moramos e saber onde encontramos o nosso policial. O policial que nos dá atendimento e cuida de nós. É o cuidador social e que vai otimizar as deficiências de falta de efetivo e uma série de outras deficiências da Polícia brasileira, precisamente no conveniamento com a população, na parceria com a população.

noticias.cancaonova.com - A pobreza e a deficiência do sistema penal, muitas vezes, são indicadas como causa de criminalidade que assola o país. É uma afirmação correta?

Ricardo Balestreri – Do ponto de vista da pobreza, a resposta é "não". Todos os estudos científicos internacionais demonstram que não há correlação direta entre pobreza e crime. Um bom exemplo para ilustrar é que, em alguns dos países mais pobres do mundo, não há altas taxas de criminalidade ordinária. Na Índia, onde há problemas de terroristas, não existem taxas, internacionalmente comparáveis como altas na área da criminalidade. E a Índia é um país muito pobre. É um dos países emergentes, mas a população é muito pobre. Se pobreza gerasse crime, a cidade do Cairo, com 14 milhões de miseráveis, seria uma das mais violentas do mundo e é uma das mais seguras.

Por que estou frizando isso? Porque temos que tomar cuidado para não criminalizar a pobreza. Pobreza não gera crime. A quase totalidade das pessoas pobres são heroicamente trabalhadoras e honestas. Há criminosos entres os pobres? Sim, mas talvez, haja mais criminosos entre os ricos do que entre os pobres. O que sabemos, pelas pesquisas internacionais, é que o agravante da criminalidade é a junção da pobreza com injustiça social. É o caso brasileiro. Nosso país é um dos mais ricos do planeta, contudo distribui muito mal a riqueza. Nesse caso, temos o agravamento dos fenômenos de insegurança pública, porque onde há muita injustiça, não onde há muita pobreza, teremos como predominância a ideologia do consumo. Nós pregamos, nos templos laicos eletrônicos, o consumo como se fosse acessível a todos. Convencemos todas as pessoas que o sentido de viver é consumir. No entanto, a maioria das pessoas nesse país não tem poder quase nenhum de consumo. Esse mix de injustiça social com a ideologia consumista proporciona muita revolta, muita expectativa frustrada e, particularmente, entre os jovens, gera muita violência e insegurança pública. Os mais jovens são as maiores vítimas e causadores da violência.

É por isso, portanto, que pobreza não gera violência, mas injustiça gera violência, consumismo gera violência. É preciso que façamos um programa de educação de valores da sociedade e sei que vocês são uma TV que cuida disso, para que as pessoas saibam que o sentido de viver não é o consumo. Nada contra ao conforto, ao bem estar, mas o sentido da vida vai muito além que o mero consumo. Se o único sentido de viver é consumir, nós estamos, então, conclamando as pessoas à utilização de qualquer recurso para se apossarem desses bens da terra tão mal distribuídos. E depois nós estranhamos que as pessoas sejam tão violentas.
Já quanto à deficiência penal, esta afirmação é completamente correta. A grande crise histórica do sistema penal brasileiro, envolvendo a terminalidade nos presídios, é a geradora de mais violência e criminalidade. Nós podemos considerar que, historicamente, os presídios brasileiros se transformaram em incubadoras do crime. Há um termo utilizado por uma facção criminosa muito importante de SP, que chama os presídios de "faculdades". São as famosas faculdades do crime. Porque de maneira geral, com honrosas exceções, esses presídios estão super lotados, não há um processo de assistência psicológica e um processo educativo. O que existe é um processo de predomínio de uma minoria prisional, que são aqueles, homens e mulheres com caracteres psicopáticos. É um grupo numericamente pequeno, mas com grande poder de persuasão e influência sobre outros presos. E até aqueles que são bons, a fim de subsistir, acabam por aderir à alguma facção criminosa. Há exceções, comprovadas por diversos estudos científicos, quando há uma ação espiritual de qualquer que seja a religião ou ação pastoral, e acaba sendo a única guarida moral que o presidiário tem. Quando não há esse tipo de ação, a única guarida dele é participar de uma gang prisional. Às vezes, o sujeito entra com baixo nível de periculosidade e aprende tudo o que não deve para sobreviver no presídio. 

noticias.cancaonova.com - A CF deste ano tem como tema “Fraternidade e Segurança Pública”. Como o governo vê iniciativas como essa? A Igreja Católica é uma aliada para a questão da Segurança Pública?

Ricardo Balestreri  – O Estado é laico, então devo ter um certo cuidado com as minhas declarações, mas vou abrir um parênteses e dar uma declaração pessoal. A minha origem de militância é nas pastorais, Pastoral de Juventude e vivi algum tempo em Comunidade Eclesial de Base. Então, conheço de perto a força de intervenção da Igreja. É umas das poucas instituições que fala e é ouvida pela população. A Igreja tem um papel de inserção pedagógica na sociedade. É preciso, portanto que, através da CF, otimizemos e aceleremos esses processos de reflexão sobre segurança pública nas igrejas, nas comunidades, nos grupos de jovens, de pais e mães e em todas as esferas da Igreja, a fim de que se mude o senso comum. Este acredita que o combate à violência é com mais violência.

O mundo do crime representa cerca de 15% da economia mundial, assim, matar, além de ser imoral, é gerar mais violência. A indústria do crime substitui imediatamente os que morrem com outros que estão na fila de espera para ocupar aquele lugar. Não se pode resolver com base em emoções perversas e desordenadas, ou na base do tiroteio, da vingança, do espetáculo policial. Mas sim com investimento sociais, com maior presença do Estado, aumento de efetivo de policial comunitário, utilização de equipamentos adequados. Todos esses dados muito técnicos, não estão ao alcance da população, pois esta pensa de maneira simplista a segurança pública. Como a velha lei de Talião, "olho por olho, dente por dente". Se isso fosse verdade, 40 anos de autoritarismo e repressão no Brasil teriam transformado o país num paraíso.

Essa não é mais a hora da truculência, da desinteligência, mas do raciocínio técnico, da inteligência, cientificidade no tratamento da segurança pública. Isso deve ser invertido para a linguagem popular, didática e a Igreja pode, com todos os seus canais e métodos, trabalhar o tema da segurança pública e ajudar com que as pessoas compreendam que não é a brutalidade que faz vencer a brutalidade, nos fazendo parecido com eles, mas nos diferenciando, tanto do ponto de vista da intelectualidade quanto do ponto de vista da nossa moralidade. Nós precisamos dar exemplo. Lembro do livro do George Orwell, "Revolução dos Bichos", que era uma crítica ao socialismo real, mas podemos aplicar à segurança pública. Ao final do livro, ele escreve: "no fim, não se sabia mais quem era porco, quem era homem". Nós precisamos saber quem é porco e quem homem e dar o nosso exemplo moral de que podemos mudar a realidade. Também gosto de um filósofo americano, Ralph Emerson, que diz "o que nós somos fala tão alto, que não se escuta o que se diz". O mais importante não é o discurso, mas a prática e os nossos valores que podem fazer a diferença.

noticias.cancaonova.com - Qual a importância das ações não governamentais, associações de bairro e demais projetos para a segurança pública?

Ricardo Balestreri  – Várias pesquisas demonstram, especialmente da Universidade de Harvard, que os países que se desenvolveram e proporcionaram bem estar físico à população, passaram pela formação de importantes redes de engajamento cívico. O que significa isso? É deixar de esperar que apenas o Estado faça a diferença, e que as ações venham apenas de cima para baixo. Não estou eximindo o Estado. Ele deve ser cobrado e fazer o seu papel, mas a sociedade também precisa arregaçar as mangas e fazer o seu papel. Pobre do povo que espera de cima para baixo a resolução de seus problemas, e feliz o povo que arregaça as mangas e traça o seu próprio destino. É preciso que o povo se dê conta da força que tem, pois há 500 anos vive esperando das elites as soluções do problemas. Se não descobrirmos que precisamos resolver nossos problemas lá onde estamos, não nos unirmos e não mudarmos o mundo a nossa volta, o homem não mudará. As grandes transformações sociais vêm de baixo para cima e é preciso que o povo brasileiro descubra o seu poder cidadão e transformador. No país, os partidos, o governo, a população desconfiam muito das organizações de base, e se olharmos para os países desenvolvidos, a grande malha das organizações não governamentais é fundamental. O papel do Estado não é descartardo, mas é preciso que haja um povo organizado, consciente, autônomo e atuante a fim de fazer a diferença na segurança pública do país

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